Durante atendimento no projeto Povo das Águas na sexta-feira (20), a Defensoria Pública resgatou, em parceria com o Município de Corumbá, um casal de ribeirinhos que estava vivendo em situação análoga à escravidão.
O programa social Povo das Águas é realizado pela Prefeitura Municipal de Corumbá para levar assistência jurídica, médica, odontológica, educacional, kits de higiene e o máximo de serviços socioassistenciais disponíveis aos moradores das regiões ribeirinhas.
Nesta 5ª edição, que aconteceu entre os dias 15 e 21 de outubro de 2017, o grupo estava na região alta do Rio Paraguai e Rio São Lourenço, próximo ao porto mangueiral, quando foi informado por moradores de que um homem e uma mulher estavam vivendo em situações precárias em uma fazenda de Poconé, município do estado de Mato Grosso.
Na ocasião, o defensor público Vagner Fabrício Vieira Flausino, que estava realizando atendimento jurídico à população ribeirinha, foi com um piloteiro e mais um morador da região até o local onde disseram estar o casal.
Segundo o defensor público, o acesso próximo ao leito do rio foi difícil. A sede de fazenda estava abandonada e destruída. Havia também uma pista de avião tomada por vegetação.
Ao casal foi prometido o pagamento de 1500 reais mensais, sendo que eles ficariam responsáveis, além da guarda da fazenda, pelo desbaste do mato.
Quando chegou ao local, o grupo encontrou um homem e uma mulher em grave situação de vulnerabilidade. Fazia 40 dias que o casal estava completamente isolado. Sem barco, não podiam sair, pois não há acesso terrestre à fazenda.
Eles viviam na área urbana de Poconé, quando foram recrutados por um senhor chamado Agenor, que se apresentou como funcionário do dono da fazenda. Da cidade, encaminharam-se até o porto Jofre, localidade de divisa entre MT e MS. Foi nesse momento que começou o martírio dos dois.
Agressão e estupro
No porto, rumo ao destino final, surgiu um homem alegando ter uma dívida com Agenor. Os dois, que nada tinham a ver com a história, acabaram envolvendo-se em uma confusão. O credor correu atrás dos homens com uma faca, eles fugiram e a mulher ficou para trás. Nesse momento, o agressor voltou, e segundo ela, desferiu tapas, socos e a estuprou. “Ele dizia que ela deveria pagar a dívida pelos dois”, contou Flausino.
Quando retornaram - Agenor e o marido - o homem que abusou da mulher já havia ido embora. Após tentativas de encontrar o agressor, decidiram partir para evitar mais problemas. Embarcaram em uma “voadeira”, espécie de barco pequeno e motorizado, em direção ao local de trabalho.
Foram deixados na fazenda com um pacote já aberto de arroz, além de óleo, feijão e farinha. A promessa de Agenor é que em uma semana ele voltaria para levar mais mantimentos, além de uma bomba d’água para que pudessem retirar água de um poço, mas nunca mais apareceu.
Por mais de um mês foram esses os mantimentos que marido e mulher tiveram para sobreviver. Para beber, precisavam buscar água do rio. Havia também dois pratos plásticos, dois garfos e facas, uma panela e copos. Racionando os cereais, passaram a comer tuviras, pequenas iscas para peixes, pois não tinham vara e anzol. Improvisaram, ainda, uma rede para pesca utilizando uma grande tampa de plástico com furos.
De acordo com o defensor, quando chegaram para o resgate, eles estavam reticentes, mas foram convencidos em sair do local.
“Nós os levamos até o barco maior, onde estávamos participando do projeto. Lá receberam assistência na saúde, um local para banho e se alimentaram. Nesse dia tentamos entrar em contato com as autoridades de Mato Grosso, mas ali é uma região difícil, não tem sinal de telefone. Optamos em descer com eles na embarcação até a reserva do pantanal mato-grossense, onde há uma sede estadual. Lá tentamos passar um radio pra polícia, mas também não conseguimos. Por fim, resolvemos retornar com os dois para MS”, contou.
Já em Corumbá, o casal foi encaminhado a um albergue, tiveram os atendimentos médicos necessários e todo o apoio da equipe de assistência social.
De volta para casa
Na segunda-feira (23), a Defensoria Pública fez os encaminhamentos jurídicos possíveis. Entrou em contato com a família, conseguiu cópia dos documentos pessoais, acompanhou a lavratura do boletim de ocorrência fez a solicitação de passagens para poderem retornar à Poconé, onde têm familiares.
“A rede de proteção e a Defensoria Pública conseguiram buscar reestabelecer parte da dignidade dessas pessoas que estavam abandonadas e deixadas a própria sorte”, comentou o defensor.
O casal saiu de Corumbá nesse sábado (25) e, segundo informações do defensor público, chegaram em Poconé no dia seguinte.
Defensoria Pública
No projeto Povo das Águas, a Defensoria Pública realizou atendimentos em oito localidades ao longo dos Rios Paraguai e São Lourenço, além de palestras sobre violência doméstica contra a mulher e exploração sexual infantil, questões recorrentes na região do Alto Pantanal.
Durante cinco dias, o defensor público Vagner Fabrício Vieira Flausino fez 34 atendimentos individuais e ministrou palestras para 548 pessoas.
“Durante conversas informais com os moradores, muitos reclamaram da dificuldade de se deslocarem até Corumbá. Em primeiro lugar por não terem condições financeiras, considerando que as passagens nas embarcações populares custam até 200 reais e a maioria recebe salário mínimo. Para percorrer 250 km, gastam cerca de 12 horas, sem contar as paradas e as intempéries da natureza. A participação da Defensoria no atendimento a essas populações é de grande importância, em especial no que tange a levar a essas comunidades educação em direitos, informações, que em razão do isolamento a que são submetidos, não chegam a seu conhecimento”, explicou o defensor.
Por Lucas Pellicioni